Black Mirror 7×01: “Pessoas Comuns” e o Preço de Viver Conectado Demais

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Black Mirror estreia com “Pessoas Comuns”, um episódio intenso sobre amor, tecnologia e a ilusão de eternidade. Até onde vale pagar para não perder?

Amor & Tecnologia

Black Mirror nunca foi sobre o futuro. Sempre foi um espelho do presente — distorcido, talvez, mas assustadoramente próximo.

O episódio “Pessoas Comuns” (S07E01), escrito por Charlie Brooker e dirigido por Ellie Pengey, é uma crítica profunda sobre a nossa obsessão por controle, consumo e conexão digital.

Um casal comum, um diagnóstico fatal, uma promessa de imortalidade via tecnologia… e uma pergunta desconfortável, porém intrigante: estar vivo é o mesmo que viver?


1. Uma vida simples, até que…

Mike e Amanda são o retrato do amor ordinário — e é aí que mora sua beleza. Eles celebram seu relacionamento através da simplicidade de comer hambúrgueres e passar a noite juntos num motel. E tá tudo bem. A rotina, com todos os seus tropeços, é confortável. Até que Amanda é diagnosticada com um tumor cerebral e a vida do casal sofre uma reviravolta.

A solução? Uma tecnologia experimental chamada River Mind: um implante cerebral que conecta a consciência à nuvem, permitindo que Amanda continue… viva. Ou quase isso.

“Não é velho. É vintage.”
— Amanda, defendendo o tênis surrado de sua aluna. Uma metáfora perfeita para o episódio inteiro.


2. River Mind: O pacote da existência

O River Mind começa como uma salvação. Mas logo se revela uma armadilha. A ideia de eternidade cobra caro: mensalidades, pacotes adicionais, upgrades de consciência.

Você já viu isso antes, né?

  • Quer menos dor? Pague.
  • Quer mais desempenho? Pague.
  • Quer menos anúncios enquanto conversa com sua esposa-máquina? Isso custa o plano Super Lux.

É a lógica dos aplicativos no Tinder com assinatura, dos jogos com skin paga, do streaming com propaganda. Só que agora aplicada à vida. E à morte.

“O produto é você.” — Uma máxima da internet, agora atualizada: o produto é sua memória, seu amor, sua presença.


3. A morte do comum: por que o simples já não basta?

O episódio não é só uma crítica à tecnologia. É uma reflexão melancólica sobre a nossa intolerância ao ordinário.

A relação que antes era suficiente, agora parece banal perto do que a tecnologia pode oferecer. O pacote “Lux” faz tudo parecer melhor: a comida tem mais sabor, o som é mais intenso, o sexo é mais performático.

Mas tudo é falso.

Amanda se torna uma versão aumentada de si mesma. Um avatar para agradar, para seduzir, para existir apenas em função do prazer do outro — ou da plataforma.

Mike se propõe a fazer coisas que ele jamais faria, só para ganhar dinheiro extra e financiar, literalmente, a vida da sua mulher. O que é uma crítica às pessoas que precisam (ou escolhem precisar) se expor de formas grotescas para ganhar dinheiro. A internet monetiza, mas a qual preço? Em troca de sua privacidade, liberdade, e até mesmo sua dignidade — seus valores são imoralmente distorcidos para que o lucro seja maior e mais rápido.

Dentre os absurdos, Mike bebe sua urina, arranca os próprios dentes e se coloca em uma posição de submissão extrema, para que pessoas lhe enviem dinheiro. Por que consumir esse tipo de conteúdo? Por que rir da desgraça e sofrimento alheio?


4. Byung-Chul Han, Black Mirror e a psicopolítica do afeto

A série parece beber direto da fonte do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, especialmente da sua obra Psicopolítica: uma forma de controle onde não somos reprimidos de fora, mas seduzidos por dentro. Acreditamos estar no controle porque temos escolhas — mas são escolhas moldadas por algoritmos, redes sociais e sistemas de recompensa. O resultado? Trabalhamos para consumir a nós mesmos.

Byung-Chul Han

Veja Mais: Psicopolítica de Byung-Chul Han

Amanda se torna um corpo alugado. Uma cópia dela circula pela casa, cozinha, sorri, transa — mas já não é ela. Mike prefere essa simulação à perda real. Escolhe o tapume em vez da ausência. É a vitória da simulação sobre a vida. E isso acontece todo dia, quando preferimos a foto do café da manhã ao café em si, ou quando viajamos preocupados com a internet e não com o lugar.

Ele alerta para um novo tipo de controle: não repressivo, mas sedutor. Acreditamos estar no comando porque escolhemos. Mas essas escolhas são moldadas, calibradas, vendidas.

Mike acredita que ainda tem Amanda. Mas tem apenas um serviço. E paga caro por isso — em dinheiro e em sanidade.

“Trabalhamos para consumir a nós mesmos.” — Han, com razão.


5. O amor em tempos de algoritmo

Quando Amanda começa a repetir propagandas, literalmente, é o ponto sem retorno. A consciência que Mike tenta manter vira um veículo publicitário. Ela é invadida por monetização, coletada por dados, reduzida a um bem digital.

O amor virou plano de assinatura.

E é aí que percebemos o mais trágico: talvez Amanda já tivesse partido, mas Mike não soube deixá-la ir. A dor do luto foi substituída pela ilusão de permanência. Só que essa permanência tem limite de uso, hora de desligar, e propaganda entre os beijos.

Veja Mais: Black Mirror: Tudo Sobre a 7ª Temporada


6. O espelho está virado para nós

“Pessoas Comuns” é o episódio perfeito para abrir a nova temporada de Black Mirror. Porque ele não fala de um futuro distante. Fala de agora.

A cada notificação, a cada atualização que promete “melhorar sua vida”, a cada algoritmo que decide o que você quer ver — estamos todos nos tornando Mike. Escolhendo a ilusão da presença eterna em vez da dor do adeus. O hambúrguer de sempre já não basta. O motel barato é motivo de vergonha. E a vida simples? Não é instagramável.

Mas será que não era justamente isso que nos fazia humanos?


Infográfico: A lógica do River Mind

Elemento no EpisódioEquivalente na Vida Real
River MindTecnologias que prometem imortalidade digital (IA, metaverso, uploads de consciência)
Plano básico gratuitoIsca free: o “grátis” que te prende — depois, vem o boleto emocional e financeiro
Upgrades de experiênciaEconomia da performance: aplicativos, filtros, smartwatches e biohacks que “melhoram” você
Publicidade em falasMonetização extrema de dados e conteúdos (ads, sugestões “personalizadas”, conteúdo patrocinado)
Amanda como produtoIdentidade transformada em avatar digital; self editável para consumo alheio
Mike como assinante eternoUsuário escravizado por sistemas que vendem conexão, mas entregam solidão gamificada

Confira uma cena impactante do episódio “Pessoas Comuns” de Black Mirror:


Conclusão: Você ainda está aí, ou já virou streaming?

No fim, “Pessoas Comuns” não é sobre tecnologia. É sobre nós. Sobre o quanto estamos dispostos a pagar — em todos os sentidos — para não sofrer. Sobre como estamos perdendo a capacidade de aceitar o fim, de valorizar o imperfeito, de nos contentar com o suficiente.

Talvez o tênis velho ainda sirva. Talvez o hambúrguer ruim tenha seu valor. Talvez viver seja mais do que estar conectado.

E talvez, só talvez, o comum seja tudo que a gente precisava.

Porque o extraordinário virou regra — e o ordinário, exceção. Vivemos em um looping de filtros, atualizações e simulacros, tentando evitar a dor, a perda, a falta. Mas é justamente aí, nesse vazio, que mora a verdade do que somos. Impermanentes. Inacabados. Humanos.

Talvez o mais revolucionário hoje seja aceitar o fim. Fechar a aba. Silenciar o celular. Encerrar a assinatura. E simplesmente sentir — por mais duro que isso seja. Porque enquanto estivermos pagando por simulações de afeto, continuaremos morrendo um pouquinho toda vez que tentarmos fugir da vida real.

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