Um espelho sombrio da era digital: “Bête Noire” explora o ego, as fake news e a manipulação da realidade em uma crítica afiada da nova temporada de Black Mirror.
Veja Mais: Black Mirror: Tudo Sobre a 7ª Temporada
Introdução: Uma Doce Ilusão Amarga
Imagine se você pudesse reescrever o seu passado. Não apenas revivê-lo, mas alterá-lo — transformando vilões em vítimas, vítimas em vilões. Essa é a provocadora proposta de “Bête Noire”, segundo episódio da sétima temporada de Black Mirror. Um título que, traduzido do francês, significa “bicho-papão” ou algo que se detesta profundamente — e não poderia ser mais apropriado.
Com direção de Toby Haynes (USS Callister, Demon 79), o episódio costura uma crítica mordaz à era da pós-verdade, à manipulação digital e ao narcisismo envernizado com traumas mal resolvidos. Tudo isso embalado com um verniz açucarado: uma fábrica de doces onde a realidade é moldada como marshmallows… ou melhor, malvas.
Se você ainda não viu a análise do primeiro episódio da nova temporada de Black Mirror, confira no link abaixo:
Black Mirror 7×01: “Pessoas Comuns” e o Preço de Viver Conectado Demais
1. O Enredo: Entre Traumas e Multiversos
Verity é a personagem central – uma mulher que sofreu bullying na infância e agora comanda uma empresa de doces inovadora. A aparente estabilidade emocional de Verity começa a ruir quando Maria, uma antiga colega de escola, aparece como nova contratada. A tensão cresce, mas o episódio esconde algo mais sombrio.

Aos poucos, descobrimos que Verity criou uma tecnologia capaz de acessar e modificar multiversos. Com ela, pode-se curar doenças, prevenir guerras ou… reescrever o passado para buscar vingança. E é aí que a narrativa dá sua guinada blackmirroriana clássica: o poder absoluto revela a fraqueza humana.
2. A Tecnologia Como Extensão do Ego
Ao contrário do episódio de estreia da temporada, Bête Noire introduz sua tecnologia de forma sutil. Nada de dispositivos futuristas brilhando na tela logo de cara. O roteiro nos mergulha em um presente aparentemente banal, onde a realidade já é manipulável – basta ter o controle da narrativa.
Aqui, o dispositivo de Verity é um espelho do comportamento contemporâneo: usamos as redes sociais, os filtros e os algoritmos para criar versões editadas da realidade. O episódio expõe isso com brutalidade. Como em USS Callister, a invenção é desviada para fins pessoais. A tecnologia não é o problema — nós somos.
“Não criamos tecnologia neutra. Criamos espelhos distorcidos de nossos desejos mais profundos.” — Charlie Brooker, criador de Black Mirror

3. Fake News, Gaslighting e a Ditadura da Narrativa
A série acerta ao mostrar como a busca por justiça pode se tornar tirania quando alimentada pelo ressentimento. Verity reconfigura os fatos, distorce memórias e assume o controle absoluto de uma realidade alternativa. Ela se torna uma criadora de fake news em escala cósmica — mas com um toque de autopiedade justificada.
Isso nos leva ao dilema moral central do episódio: é justo criticar alguém que sofreu bullying? Ou pior: será que nossa empatia pela vítima justifica suas ações, mesmo quando se tornam opressoras?
Vivemos numa era onde cada evento tem múltiplas versões, disputadas com fervor. A verdade, hoje, parece menos importante que o controle da narrativa. Quem controla a história, molda o presente — e inevitavelmente, o futuro.
4. Maria: A “Mocinha” em Perigo… ou Outra Manipuladora?
Maria parece, à primeira vista, a típica heroína injustiçada. Mas o roteiro faz questão de mostrar que ela também manipula. Ela suaviza o passado ao contar para seu namorado Kai, exibe arrogância ao propor sabores bizarros com convicção cega, e corrige detalhes triviais como uma forma sutil de dominação.

Ela representa o marketing, a arrogância do branding pessoal, a certeza de que estar certa é mais importante que estar conectada com a realidade.
Será que, com o mesmo poder que Verity tem, Maria agiria diferente? Talvez não.
5. Vivemos Todos em “Bête Noire”
Black Mirror sempre foi um espelho — e Bête Noire é um reflexo incômodo. Verity e Maria são arquétipos do nosso tempo: uma quer vingança, a outra quer aprovação. Ambas manipulam a realidade. Ambas se alimentam da validação do ego.
No fundo, o episódio não é sobre duas mulheres. É sobre todos nós, cercados por algoritmos, influenciadores, bolhas de opinião e deepfakes emocionais. Vivemos num gaslighting coletivo, onde a verdade é um conceito fluido, e a popularidade importa mais que a precisão.
6. A Inteligência Artificial Verdadeira: A Humana
Um dos insights mais poderosos do episódio vem nas entrelinhas: a verdadeira “inteligência artificial” não está nas máquinas, mas em quem as programa, lucra com elas e manipula seus resultados. O poder de moldar realidades está, hoje, nas mãos de poucos — e a maioria sequer percebe isso.
Verity, com seu dispositivo, apenas antecipa o que já acontece em menor escala: influencers, políticos e corporações reconfigurando o mundo segundo seus interesses. A tecnologia não nos libertou. Apenas nos deu novas formas de aprisionamento.
Conclusão: Entre Doce e Amargo, a Realidade Derrete
Bête Noire não é um episódio perfeito — mas talvez seja um dos mais pertinentes. Ele nos obriga a encarar o incômodo de ver o vilão em nós mesmos, de reconhecer que, no fundo, todos queremos moldar a verdade a nosso favor.
A linha entre vítima e vilão, entre criador e criatura, entre tecnologia e ego… tudo se mistura. E é aí que Black Mirror brilha mais forte: quando nos faz perguntar, de forma quase dolorosa, quem realmente somos diante do poder de moldar o mundo.
Confira uma cena icônica do episódio, em que Verity confronta Maria: